história de uma cantiga
Nem precisa de fechar os olhos para acreditar que é para
ela, só para ela que as palavras são inventadas e a música imaginada. Um corpo
árvore esticado até ao céu dança «o pa-
raí- so- no teu olhar».
Augusta despe a
blusa e suspende o gesto no top de
alcinhas a condizer com a saia tipo rapariga campestre, reminiscência de
qualquer western barato ou do tempo
das raparigas em flor, make love not war.
Numa verónica quase perfeita, deixa cair a seus pés a saia de seda florida.
No espelho uma
personagem de Almodóvar, nádegas redondas, coxas volumosas, os seios menos
rijos, a linha da cintura ainda considerada interessante, a curva da barriga – o
tempo das matronas, para trás as twiggies.
Os pés descalços na alcatifa áspera. O deleite da dança.
A voz rouca do cantor romântico, «dá-me lume, dá-me lume», levanta-lhe todos os
pelos dos braços e «o paraíso no teu olhar» traz-lhe um arrepio pelo corpo
todo.
Memória das cenas em que tinha incendiado e sabia da
certeza do paraíso nos olhos dela. Religiosamente guarda cada momento, cada
segundo de penumbras, cigarros, algum álcool e aquela música no corpo que
nascera com ela. Dar tudo, abrir-se numa oração, para a música e o sentir.
Pega na lista telefónica e procura p,p,p,p, não, é melhor tentar a Net, Palma ponto pt, nada.
Zero a tecnologias. Sete e meia da noite, toma um banho de espuma, hidromassagem
30 minutos, sumo de laranja em roupão, um queijo fresco, lavar os dentes, um
vestido justo e decotado. Não. Acaba por sair de calças compridas pretas, boca-de-sino,
de seda pesada balançante a acariciar as pernas no andar. Blusa igual à das bailarinas,
decote em bico, bem apertada com uns
atilhos. As sandálias de salto alto pretas, de verniz e pedrinhas de vidro entre
os dedos, a bolsinha a tiracolo. Écharpe
esvoaçante, o roxo sempre combinara com os seus olhos. Já na escada, volta atrás,
um cálice de whisky. São 8 e 45, ainda é cedo; pela noite de Lisboa, sente-se
brilhante e livre. Deixa o carro no Cais-do-Sodré e sobe até ao Bairro Alto.
Como antigamente. É bom caminhar sozinha, com esta leveza dentro dela, nem
idade, nem barriguinha, tudo empacotado naquela roupa que lhe fica a matar. Num
convencimento instantâneo avança para a passadeira, aperta violentamente os
lábios a reavivar o brilho escuro do baton.
Sobe a rua do Alecrim como quem tem tudo combinado. Passa pela Brasileira, uma
bica e um cigarro. P de Palma.pt. A Brasileira imunda. Mete-se
num teatro para fazer horas, o João Lourenço de cabelos brancos. O tema da peça:
pessoas, a paisagem mais aliciante do
universo, ainda bem, pusera-lhe mais alma.Paragem na rua da Misericórdia, ainda durava, a leitaria,
um whisky solo – Almodóvar, amante de
mulheres, também o Palma.
A noite nem quente nem fria – morna por dentro, Augusta continua
a subir para lá de S. Roque. Entra no João
Sebastião Bar com o seu passo
inseguro por entre as mesas de névoas viciadas de tabacos. Mesmo ao fundo, lá está ele, na mais inacessível. Que bom ser escuro, pensa, mas quando ela lhe pede, dá-me lume, ele viu mesmo o paraíso no seu olhar.
nota: Este recado,
guardado na gaveta há mais de dez anos, aqui fica. É que ouvi hoje o Jorge
Palma confessar a António Macedo,na Antena 1, que estimava o afecto do público, como no caso daquele senhor
que se aproximou dele e muito sério, lhe disse, obrigado . E acabei por decidir que há coisas que não vale a pena adiar.
Obrigada, Jorge Palma.
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