Mostrar mensagens com a etiqueta teatro. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta teatro. Mostrar todas as mensagens

maio 16, 2014

Íon, Luís Miguel Cintra




e o mundo é um gigantesco gellyfish

nestas manhãs soturnas de verdade



Uma infinita e mole massa quente e respirante, o universo em que adormecidos males e cansaços acordam todos os dias em antípodas distantes ou num lugar da alma em que há manhãs em que tudo se revela.


Move-se esta massa eterna e vagarosa de eflúvios quentes de vulcão e bolhas de fervilhante mal, todos os dias, os mil quinhentos e cinquenta e tal dias elevados à infinita potência, que é quanto leva uma alma humana a tornar a adormecer na mole universal do mal e uma noite ou dia voltar a acordar e a levantar-se escorregadia, e poderosa, e cega.

Razão pela qual devíamos voltar aos clássicos, a chave. Neles o eterno reencontro de caminhos, muitos, percorridos antes de nós, de epílogos há muito chegados e esquecidos e repetidos no imenso quebra-mar do tempo.


Por isso Eurípedes, por isso Shakespeare, por isso Platão e Pasolini.

Neles a nossa alma decomposta – o humano mal, vil, com curtas ascensões ao bem que ele pressente, e a que resiste. O mal será mais saboroso, apetitoso, sexy. E a culpa, espectadora impotente, quase sempre chorosa, que se arrepende hoje e torna a cair amanhã.


É disto que somos feitos, deuses e homens, e todos o têm dito, de Eurípedes a Pasolini. Seria o que LMC nos quis também dizer desta vez? Ou estava a espectadora atenta num daqueles dias de cegueira para o que não quer ver ? Tanto faz.


Muito mais haveria a divagar sobre esta construção cénica de luz e sombra, de sons de passos de Abril a culminar na estrela d’ alva que um dia voltará a iluminá-los. Fico-me por esta citação de Platão que aclara a minha culpa.


 “ Não deverá gerar filhos quem não quiser dar-se ao trabalho de criá-los e educá-los.”

abril 09, 2014

"o que está em cima está em baixo"



O espectáculo que Ricardo Pais apresenta no Teatro Joaquim Benite Turismo Infinito,  um dos mais belos a que assisti nos últimos tempos. Pessoa e as palavras, num espaço de perspectiva tão longe e tão perto, fraca expressão, a que encontro para caracterizar um cenário de luz que ora cria em nós a miragem de olhar as palavras num mundo infinito, ora num outro, tão linear quanto estas nossas vidas, de ecrã plano ou de folha negra riscada a branco. 


“Protejam-se contra a tortura da beleza”, diz Lídia Jorge no Prefácio de “Laços de Família” de Clarice Lispector e é o que se sente neste Infinito, bonito demais, tão belo que podes até chorar, mas não por ser triste. Tal como em Lispector, a quem Lídia Jorge chama “parente legítima de Pessoa”. 


  Será por o mundo estar cinzento, que me acontecem estes encontros improváveis, esta aparente dispersão, como se em múltiplas janelas procurássemos a paisagem que nos faz falta. 


“Clarice Lispector uma das raras escritas da qual se sai diferente quando uma vez lá se entrou, como se ela mesma fosse e contivesse em si a oferta de uma revelação surpreendente e por vezes devastadora”, afirma Lídia Jorge e eu penso em Saramago. Tudo por acaso, sucede estar a reler o "Evangelho Segundo Jesus Cristo", a olhar Maria mãe de Jesus, pelos olhos de Saramago, e a pensar, que sorte, ser mulher. E que deus, na sua infinita bondade tenha arquitectado, ao que parece, esta teia de úteros que perpetuam o universo e que, na sua imensa piedade, não tenha abandonado Adão sozinho no Paraíso, coitado .


 "Lugar instável" como Nuno Carinhas classifica o território deste " Infinito, de onde tudo pode rolar na nossa direcção …"

março 03, 2014

e que viva o teatro, histórias de sangue faca e alguidar


  
 
Título qualquer serve, terá observado  Irene Lisboa a um editor.

A  minha memória foi a correr buscar uma história antiga que recupero hoje.   

No tempo em que andei pelos teatros, tive a sorte de trabalhar com uma pessoa, daquelas mesmo à minha medida, o encenador Almeida e Sousa. Uma alma entre o anarco-sindicalismo , o surrealismo, concretismo e mais além, que detesta  técnicas directivas , na encenação, na direcção de actores,  em tudo.  Ele sugere e pede sugestões. O facto é  que leva sempre a água ao seu moinho. Consegue transformar o material que tem à frente-corpos, lixo, trapos velhos, em esculturas daquelas com um brilhozinho nos olhos, numa brincadeira , um jogo, entre a paixão perversa e o jogo da macaca. 
Em tempos preparámos uma cena , como ele diz , em conjunto. Eu estava feliz a fazer de maria josé, que tinha matado a minha  mãe com uma machadinha e era entrevistada num daqueles programas de televisão , que ainda há muito por aí, a puxar ao sentimento e á desgraça.
 A nossa inspiração- Maria, não me mates  que sou tua mãe . O texto,  tínhamos dado cabo dele , diriam os meus amigos   eruditos da zona dos que sacralizam tudo ,  se lá tivessem ido .

A peça foi apresentada nas casas velhas da gandarinha e abria com o Mané de Minotauro  (do Vítor Belém) ao fundo do cemitério interior, que à época ainda continha as ossadas – à vista , deitadinhas nas campas abertas. A minha filha pequena gostou daquilo- olha uma vaca, disse ela ao pai.  Tínhamos uma actriz, muito boa, a Ralina , com uma voz cheia de cor , o Bruno Vilão- que faz tudo bem- até  mudava de roupa dentro de uma banheira velha , o Almeida e Sousa com voz de padre , lá em cima nos andaimes a desinquietar as almas, e o Marco , um tipo com imensa garra que improvisava , se fosse preciso, na cabeça de um tinhoso ( conhecem a expressão? é de Campo de Ourique, aposto).
 Foi ao Marco que eu calhei em sorte na tal cena da Maria José. Adorei. Houve uma noite em que destruímos o texto  e improvisámos quase tudo. Acho que foi na noite desta fotografia (tirada pelo pai do Bruno?), com o Mané por trás de nós cheio de very lights fumacentos.

   Bem ,mas tudo isto a propósito de títulos.  O título da peça, sugerido por mim, lembro-me bem pelo que aconteceu a seguir- histórias de  sangue ,faca e alguidar- e o que é que aconteceu a seguir? Pois bem, depois de vários meses de ensaios, aparece um outro grupo , com outra peça, que anuncia - histórias de sangue  faca e alguidar-  a estrear antes de nós. 
  Coincidência ou não, a  Mandrágora manteve   o título, pois claro.

A partir daí, quando me perguntam o título seja do que for que esteja para sair, a resposta é sempre a mesma- não sei.

mjc

junho 23, 2012

stanislavski, a construção da personagem



Constantin Stanislavski,leitura obrigatória na Escola de Teatro :  “ quando  um actor representa, está dividido em duas partes ."

Lembrem-se das palavras de Salvini, cita ele.

“Um actor vive, chora , ri em cima do palco, mas ao chorar ou rir ele observa as suas próprias lágrimas e a sua própria alegria.
 Esta dupla existência, este equilíbrio entre a vida e a interpretação dramática é que forjam a própria arte.”

E , na minha opinião, todas as artes.

 Muitas vezes se atribui ao artista a qualidade de desequilibrado .  Terá até havido quem tenha ido parar à fogueira da inquisição ou a manicómios mais recentes, curar a alma doente. 

Van Gogh , Pollock, Paula Rego, Virgínia Woolf, tantos poetas, tantos outros .  Em cima de um palco, dos diversos palcos, a pintalgar o chão e as paredes, a recolher materiais do lixo que sirvam a sua forma de expressão, ou a misturar palavras e  sons  a seu belo prazer, são apanhados por olhos que dizem – Vai-te curar.

Só que encontrar os outros eus que habitam em nós não é fácil. É por vezes tão doloroso que dá para emagrecer, para engordar, pior ainda, não conseguir sair de lá, dele do outro, o nosso duplo.

Em a construção da personagem ,  Stanislavski explica:

 “Apreensivo e enervado, levei comigo a questão: como deveria ser a personagem que eu queria assumir logo que envergasse aquele roupão coçado?” ( pg 16).

A partir daí , o actor não é  mais ele mesmo, “não estava sozinho no interior dele mesmo”.

“Finalmente à noite, despertei bruscamente e tudo ficou claro. Aquela segunda vida que transportava paralelamente à minha, era uma vida secreta, subconsciente. Desenrolava-se no quadro dessa tal vida o trabalho de pesquisa que conduziria àquele homem estranho do qual já encontrara o vestuário.” ( pg 17).

  Apesar das dificuldades, dos nervos, da confusão espiritual , são poucos aqueles que , depois de percorrido o caminho para o acto criativo, desejem voltar atrás.  E, ao que parece, Constantin  concorda.

“ Sentia-me francamente feliz. Mas esta sensação não era comparável a nenhuma outra, resultante de uma vulgar satisfação. Era uma alegria que provinha directamente do êxito de um esforço de criação, de uma realização artística.” (pg.25).

E muito mais haveria a dizer sobre este senhor, de quem me lembro muita vez, o tal Stanislavski. Mas ontem  matei saudades, quando ao assistir ao espectáculo  da Ângela, no Trindade, bem vi quanto ela tinha aprendido a lição. E recordei os tempos da Escola. O mesmo caminho que temos percorrido para lugares diferentes ,  "francamente felizes”.

E eu que só queria dizer que gostei, que este espectáculo devia ser visto pelo país  fora, com as estatísticas da violência doméstica em cartaz ,que passem por lá, a ver Coisas de Homem. Que estes dois actores , Ângela  Pinto e Helder Gamboa fizeram francamente bem o trabalho de casa , ajudados pela equipa e pela  encenadora, Maria Emília Correia.

 por maria joão carrilho