Em "Chinfrim" , bem escolhidas imagens documentam estados de alma. Lembro o tempo distante das amarras do cinzentismo do fascismo (por que se faz sempre esta associação, só quem por lá passou saberá). Um tempo em que valia tudo, desde censurar o que lias, os textos que escrevias, até te enterrarem viva no local de trabalho ou nalguma “instituição” . E, de como muitos de nós, na adolescência, se recolhiam num mundo de fantasia, onde voávamos por azuis mais abertos e navegávamos pelos mares misteriosos do nosso desgosto.
À nossa memória basta por vezes um pequeno click para voltar atrás.
Era uma criança de olhar vago, não diria perdido nem sequer triste. Os seus olhos viajavam por mundos incógnitos: dragões dourados, promessas de asas.
Nem tudo fazia sentido, a vida era um marulhar à volta -o seu dragão favorito escutava todos os porquês e interrogações.
Isto já foi há muito, muito tempo, nem sei porque insisto nesta estória.
Ramoth -- tinha-o ele encontrado entre as páginas de um livro e escondera-o no seu quarto. Ninguém lá podia entrar. Aninhava-se aos pés da cama, fechava as asas e as escamas ficavam da cor do edredon. De manhã era tratado com um pano de lã, escama a escama, fechava os olhos durante esta operação. A seguir a criança abria a janela, o dragão saltava e voava para um breve passeio. Quando pegava na mochila e descia para a rua, já Ramoth sobrevoava o portão da casa. Acompanhava-o até à escola.
Contava como na terra dos dragões se era amigo de verdade. Se alguém tinha uma tarefa a cumprir e tinha de partir, esperava-se. Esperava-se sempre. No sítio dos dragões o tempo era diferente.
Francisco voltava para almoçar. À janela, de olhos fechados, sem conseguir resistir ao brilho do Sol, lá estava ele, não comia nem bebia, o sol era o seu alimento.
Antes de fazer os trabalhos da escola, Francisco encostava-se ao seu amigo. Assim, sentado, o dragão era pouco maior que ele. Com aquele aspecto, um dourado metálico, ninguém diria como era confortável; Ramoth levantava a asa esquerda e ele metia-se lá debaixo. Pareces uma galinha, murmurava Francisco, e deixava-se dormir. Ramoth sorria devagar como só os dragões sabem sorrir.
Ensina-me a voar.
"Make no judgments where you have no compassion".
Anne McCaffrey, O Planeta dos Dragões, colecção Argonauta
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outubro 28, 2009
outubro 19, 2009
Subindo
Sobe a rua do alecrim e entra no chiado. Os Armazéns do Chiado são agora um moderno centro comercial. Por polidos corredores deslizam sombras de balcões antigos, peças de pano penduradas de escaparates, do tempo em que se comprava o tecido para mandar fazer na modista, à maneira de O Último Figurino. Manequins de cartão vestidos do azul acinzentado, de montras de leste que já não é leste, convidam-nos a atravessar portas emolduradas por baixos-relevos arte nova. Na escada rolante, espectros de caixeirinhas silenciosas cruzam-se com senhoras de luvas e batons vibrantes, guardados em redes de minúsculos chapéus.
O toilette, a antecâmara, a empregada de sempre, bata preta e avental oferece a toalha para as mãos, de linho branco, o pires de prata, onde se deixa qualquer coisa. Hoje teríamos vergonha de utilizar expressões deste tipo, sentimo-nos contrafeitos quando temos que dar uma gratificação. A tal situação embaraçosa.
Para mim continua a ser vergonhoso deixar essa espécie de esmola, esse meio suborno, que alguns utilizam de forma escandalosa, para serem bem tratados, respeitados, que há gente que se diminui perante quem tem dinheiro. E falta-me muitas vezes a coragem para bater o pé. Tenho sempre muitas dúvidas, diria até que a dúvida é a minha profissão, ou que faço profissão de fé da dúvida. Mas adiante, estão a ver como a malvada, a dúvida, é claro, se entranha no discurso e só empanca?
O toilette, a antecâmara, a empregada de sempre, bata preta e avental oferece a toalha para as mãos, de linho branco, o pires de prata, onde se deixa qualquer coisa. Hoje teríamos vergonha de utilizar expressões deste tipo, sentimo-nos contrafeitos quando temos que dar uma gratificação. A tal situação embaraçosa.
Para mim continua a ser vergonhoso deixar essa espécie de esmola, esse meio suborno, que alguns utilizam de forma escandalosa, para serem bem tratados, respeitados, que há gente que se diminui perante quem tem dinheiro. E falta-me muitas vezes a coragem para bater o pé. Tenho sempre muitas dúvidas, diria até que a dúvida é a minha profissão, ou que faço profissão de fé da dúvida. Mas adiante, estão a ver como a malvada, a dúvida, é claro, se entranha no discurso e só empanca?
...e descendo o Chiado
No entanto dava-me jeito o Trinkgeld que arrecadava a servir à mesa. No dia seguinte estava garantido o almoço em quiosque de rua, uma espécie de filete frito ou as inefáveis salsichas e, excepcionalmente, bolas de Berlim. Esqueci o nome dos meus benfeitores, camionistas, bebedores de cerveja, poucos estudantes. Mas quem nunca vou esquecer é aquele homem de óculos pesados, de aros pretos que entrava para jogar flippers, bebia uma cerveja e nunca saía sem me deixar uma moeda de prata, seria um marco? Nunca me dirigiu mais do que bom dia, boa tarde, Guten Tag, Maria, mas contava que ele aparecesse. Era uma espécie de anjo protector, alguém que eu achava que se apresentava para se certificar de que nenhum mal me aconteceria, um senhor muito importante, Maria, segredavam-me ao balcão, Lach mal, Maria, lach mal, e eu ria. Seria em troca da gorjeta?
Almoço uma salada com vista para o castelo, como se as ruas lá em baixo pudessem ser uns rios, que eu não as vejo, só o casario pombalino, a subir, devagar, a encosta. Passo pelas livrarias, deambulo pela Fnac e não resisto a esquadrinhar a Sá da Costa. Por um euro e meio trago para casa o Basil Davidson em português, Cadernos Livres, nº 4, edição de Janeiro de 74, Os Camponeses Africanos e a Revolução. Arrepiantes, as opiniões de Marcelo Caetano sobre África e os africanos. Um passeio à maneira de Jorge Silva Melo que me acompanha por estes dias n' O Século Passado, Livros Cotovia.
Frente à Brasileira sigo pela António Maria Cardoso (não sei se se chama agora, rua dos mortos pela pide) esteticamente mais apetecível do que descer a Rua do Alecrim.
Entro, para um café, no Spot, café-restaurante do S. Luís onde além de ouvir boa música, se pode fumar. Nunca lá tinha ido, sou mesmo bimba, sento-me num grande sofá azul. À minha frente, um casal, não propriamente um casal, ela jovem, bonita, eficiente, podia até ser a secretária do teatro, figurinista, ele, de fato preto e camisa branca, poucos cabelos brancos, classy, conversam. E vira-se ela à saída “ era só para o Jorge ficar a saber”.
Será isto a close reading de que fala Jorge Silva Melo? Mas, tão close?
E tropeço na citação de Simone Weil que antecede o Prefácio de Século Passado, de JSM: a nossa vida real é, em mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção.
Almoço uma salada com vista para o castelo, como se as ruas lá em baixo pudessem ser uns rios, que eu não as vejo, só o casario pombalino, a subir, devagar, a encosta. Passo pelas livrarias, deambulo pela Fnac e não resisto a esquadrinhar a Sá da Costa. Por um euro e meio trago para casa o Basil Davidson em português, Cadernos Livres, nº 4, edição de Janeiro de 74, Os Camponeses Africanos e a Revolução. Arrepiantes, as opiniões de Marcelo Caetano sobre África e os africanos. Um passeio à maneira de Jorge Silva Melo que me acompanha por estes dias n' O Século Passado, Livros Cotovia.
Frente à Brasileira sigo pela António Maria Cardoso (não sei se se chama agora, rua dos mortos pela pide) esteticamente mais apetecível do que descer a Rua do Alecrim.
Entro, para um café, no Spot, café-restaurante do S. Luís onde além de ouvir boa música, se pode fumar. Nunca lá tinha ido, sou mesmo bimba, sento-me num grande sofá azul. À minha frente, um casal, não propriamente um casal, ela jovem, bonita, eficiente, podia até ser a secretária do teatro, figurinista, ele, de fato preto e camisa branca, poucos cabelos brancos, classy, conversam. E vira-se ela à saída “ era só para o Jorge ficar a saber”.
Será isto a close reading de que fala Jorge Silva Melo? Mas, tão close?
E tropeço na citação de Simone Weil que antecede o Prefácio de Século Passado, de JSM: a nossa vida real é, em mais de três quartos, composta de imaginação e de ficção.
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