Título qualquer serve, terá observado Irene Lisboa a um editor.
A minha memória foi a correr buscar uma história antiga que recupero hoje.
No tempo em que andei pelos teatros, tive a sorte de trabalhar com uma pessoa, daquelas mesmo à minha medida, o encenador Almeida e Sousa. Uma alma entre o anarco-sindicalismo , o surrealismo, concretismo e mais além, que detesta técnicas directivas , na encenação, na direcção de actores, em tudo. Ele sugere e pede sugestões. O facto é que leva sempre a água ao seu moinho. Consegue transformar o material que tem à frente-corpos, lixo, trapos velhos, em esculturas daquelas com um brilhozinho nos olhos, numa brincadeira , um jogo, entre a paixão perversa e o jogo da macaca.
Em tempos preparámos uma cena , como ele diz , em conjunto. Eu estava feliz a fazer de maria josé, que tinha matado a minha mãe com uma machadinha e era entrevistada num daqueles programas de televisão , que ainda há muito por aí, a puxar ao sentimento e á desgraça.
A nossa inspiração- Maria, não me mates que sou tua mãe . O texto, tínhamos dado cabo dele , diriam os meus amigos eruditos da zona dos que sacralizam tudo , se lá tivessem ido .
A peça foi apresentada nas casas velhas da gandarinha e abria com o Mané de Minotauro (do Vítor Belém) ao fundo do cemitério interior, que à época ainda continha as ossadas – à vista , deitadinhas nas campas abertas. A minha filha pequena gostou daquilo- olha uma vaca, disse ela ao pai. Tínhamos uma actriz, muito boa, a Ralina , com uma voz cheia de cor , o Bruno Vilão- que faz tudo bem- até mudava de roupa dentro de uma banheira velha , o Almeida e Sousa com voz de padre , lá em cima nos andaimes a desinquietar as almas, e o Marco , um tipo com imensa garra que improvisava , se fosse preciso, na cabeça de um tinhoso ( conhecem a expressão? é de Campo de Ourique, aposto).
Foi ao Marco que eu calhei em sorte na tal cena da Maria José. Adorei. Houve uma noite em que destruímos o texto e improvisámos quase tudo. Acho que foi na noite desta fotografia (tirada pelo pai do Bruno?), com o Mané por trás de nós cheio de very lights fumacentos.
Bem ,mas tudo isto a propósito de títulos. O título da peça, sugerido por mim, lembro-me bem pelo que aconteceu a seguir- histórias de sangue ,faca e alguidar- e o que é que aconteceu a seguir? Pois bem, depois de vários meses de ensaios, aparece um outro grupo , com outra peça, que anuncia - histórias de sangue faca e alguidar- a estrear antes de nós.
Coincidência ou não, a Mandrágora manteve o título, pois claro.
A partir daí, quando me perguntam o título seja do que for que esteja para sair, a resposta é sempre a mesma- não sei.
Estive lá nesse dia, com a menina da "cabeça de vaca" pela mão.Gostei,apesar do surrealismo não ser "a minha praia".Gostei, porque a liberdade do texto,da encenação e do desempenho dos actores,me tocaram no que sei mais importante...ser livre!Essa liberdade,esse estar intelectual ou psíquico,tanto faz,sem convenções condicionantes,sem limite inferior e superior,esse estado mental fluido,de contornos esbatidos,talvez delirante,tal Noronha da Costa,ou ainda mais,Cesariny e Seixas,só no surrealismo,em todas as suas expressões internas e externas,é possível,reconheço eu.
ResponderEliminarA propósito,a expressão"na cabeça de um tinhoso",não é de Campo de Ourique,a minha mãe, que era do Algarve,é que a usava muito.
Mão de vaca
Foi um bom título, prova disso é a desavergonhada imitação. E são memórias inesquecíveis, as dessa "cena", acho até que me influenciaram um pouco no gosto ou atracção pelas coisas do mafarrico, na adolescência.
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