Quando a professora de Moral me
pediu o caderno para mostrar o que eu tinha escrito sobre Abraão e o
sacrifício do filho Isaac, ainda a palavra judeu não passava da menção de uma
origem, alguém que era de um sítio do mundo. Não fazia ideia que Abraão tivesse
sido judeu. Para me confundir já me bastava o complexo catequético, não havia Judeus
na Bíblia, a Bíblia era dos Católicos. Sobre estórias bíblicas sabíamos muito pouco,
o que os padres diziam é que interessava.
Estava eu na fase de deixar de ir à
missa da igreja de S. Domingos, ao Domingo de manhã, com aqueles catequistas de
olhar sórdido, a gostarem de dançar no escuro, dos padres a perguntar na
confissão – e houve beijos, houve beijos; da menstruação a aparecer e nós ajoelhadas,
«postergadas». - Não, isso eram as freiras no hábito branco sujo, deitadas no
chão da capela, a lamber o chão… e eu sem perceber nada. Não imaginava que Abraão
tivesse sido o pai do Judaísmo, só muito mais tarde ouvi falar das «Religiões
do Livro».
A primeira vez que pressenti o conceito de «judeu» terá sido nesse verão. O Diário de Anne Frank, o livro que mais me impressionara nos doze anos que levava de vida . Até ali, Sindbad O Marinheiro e poucos mais.
A primeira vez que pressenti o conceito de «judeu» terá sido nesse verão. O Diário de Anne Frank, o livro que mais me impressionara nos doze anos que levava de vida . Até ali, Sindbad O Marinheiro e poucos mais.
Mas Anne Frank, uma rapariga da minha idade,
tinha passado o que vi descrito pela própria, precisamente na fase em que, também
eu, vivia a confusão da pré adolescência, os entusiasmos, as paixões pelo vizinho
de baixo, pelo outro do lado, ou por um rapaz da minha rua que telefonava lá
para casa a convidar-me para saídas a que nunca tive coragem de comparecer e a quem
eu respondia sempre que sim, que ia descer. Nunca desci, nem pensar em falar
com ele «ao vivo e a cores». O Jorge, mais tarde «o gordo», tinha passado para
o 3º ano com média de 11… fraquito, não acham? A carta de amor que me mandara,
em papel de seda cor- de-rosa, li-a milhares de vezes, ainda deve andar por aí,
dentro de algum «diário». Imaginem o ridículo, "o meu coração palpita", nem vos conto como “o quê”. Mas valeu. Apesar dos despiques da minha irmãzita, cheia
de raiva por não ter sido ela a escolhida, sobretudo porque aquilo dava nas
vistas – o emissário, aliás a emissária, tinha sido uma prima nossa que, claro,
não fizera segredo da paixão. Pelo menos aprendi que a maior parte das mulheres
detesta ser ignorada – nem que seja por um
desgraçado sem ideias.
Vejam bem, não há meio de chegar à
minha primeira relação com o Judaísmo… A culpa de nostalgias destas é da Clara
Ferreira Alves, que publica há tempos no Expresso uma conversa com David Grossman – vale a pena ler. «Um
escritor é alguém que tenta inscrever a sua narrativa pessoal, na narrativa mais
vasta do mundo, a paisagem humana», palavras com que CFA introduz uma das
questões. Ela quer saber se David se dá conta de que a história pessoal dele se
transforma numa parte da explicação universal para o que significa ser humano.
David Grossman responde:
«… descobri há muito tempo que
escrevo para compreender o que me acontece (…). Nós, os escritores, não somos
historiadores, não escrevemos sobre os grandes processos históricos da
Humanidade. Escrevemos sobre o modo como esses processos afectam um indivíduo
ou dois.»
E é precisamente por ter lido Anne Frank,
que não posso deixar de concordar com Grossman.
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