julho 02, 2014

Sublinhados - Mário de Carvalho e António Guerreiro



  – Escrever sem ler? Uma das perguntas que se lhes coloca.

 A resposta de Mário de Carvalho:


«[…] Prezo muito e estou muito grato aos grandes escritores que foram meus mestres e que a cada momento me desafiam e me levam a considerar que, se não estou à altura, não foi por eles não fazerem o possível por me mostrar em que regiões se situa e refulge a grande literatura.

É com algum espanto – e também com aquele susto com que vemos aproximarem-se as catástrofes – que me apercebo da rasura que autores dos nossos tempos pretendem impor aos que os precederam e que, não raro, foram aqueles que os despertaram e lhes moldaram a linguagem, transmitiram os termos de comparação e a seiva de que se alimentam.

Tem perorado por aí, um certo triunfalismo inauguratório de quem se apresenta como fundador da literatura portuguesa, como se antes apenas existisse o nada, ou…o dilúvio. Trata-se sempre de um efeito que procura –  com espírito de oportunidade – tirar vantagens das lacunas de certo espírito dos tempos em que têm a sua parte as deficiências do ensino.

 Em alguns casos, um agudo sentido de marketing leva à complacência ou mesmo à cumplicidade com o desconhecimento, não querendo alguns autores que suspeitem encontrarem-se eles noutro plano de linguagem, a dar para a inacessibilidade, por demais desencorajadora dos chamados «públicos» que identificam como consumidores rasos e destituídos.

Mas em não se tratando de ingratidão, ou senso comercial, existem também os casos de pura e santa ignorância, carregada de uma ingenuidade que só não suscita ternura, porque a ignorância costuma apelar atrevidamente à bazófia, e como diria Aquilino, «à farófia». […]»


Mário de Carvalho, Intervenção na Sessão de Homenagem a Aquilino Ribeiro, no Panteão Nacional em 25 de Fevereiro de 2013, O escritor, Nº1 Associação Portuguesa de Escritores



 Também em António Guerreiro encontro idêntica preocupação no que se refere a alguma “nova” literatura, escrever, ser escritor, não requer ter lido muito e ter uma relação com a história e a tradição literárias. Esta ausência de um vínculo memorial com a literatura é um fenómeno completamente novo. Ao contrário de Agustina, diz AG, para quem escrever foi sempre, também uma forma de ler e de ocupar uma posição na cadeia transmissível da tradição.

 É cada vez mais rara a crítica de escritores, isto é, os textos de escritores sobre os livros de outros escritoresO campo literário já não é um “campo de batalha” como foi de maneira extrema durante toda a época do modernismo . As batalhas propriamente ditas transferiram-se para a edição e para as regras de integração no espaço público (veja-se o “caso” Herberto Helder). Os escritores já não são combatentes nesse campo de batalha. A relação uns com os outros é agora de outro tipo: é uma relação de concorrência.


António Guerreiro, A Grande Paz Literária, Jornal Público, 27, 06, 2014.

Sem comentários:

Enviar um comentário