« Históricamente, foi um gesto carregado de riscos, velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente a transgressão, restaurando o risco de uma escrita à qual, no entanto , fossem garantidos os direitos de propriedade. A partir daí ( finais do sec. 18 inícios de 19), explica Michel Foucault,« a possibilidade de transgressão própria do acto de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura.»
Ainda bem, transgredir é delicioso, mesmo que não levemos atrás de nós o resto da turma. Mas ser imortal é preciso? Inspiradora, a imagem de Xerazade, com a vida presa por um fio. Para Xerazade contar histórias era não morrer ,«adiar a morte».(pgs 35,36)*.
«A nossa cultura metamorfoseou este tema da narrativa (...) a escrita está agora ligada ao sacrifício da própria vida (...) a obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser assassina do seu autor.» Ou seja, como Foucault já tinha citado,- Beckett- « que importa quem fala?» (pg 34)*
Haverá autores imortais,embora prefira pensar que se alimentam uns dos outros, desde e para sempre. Quereria Xerazade ser imortal? Talvez apenas viver, que não vive se não imagina, não inventa,não conta as suas histórias . A escrita é estar vivo, como diz António Carlos Cortez , «o rio da vida», quem escreve «como quem morre/ e quer viver» que escrevendo se «prolonga/ o dia acabado/ em mais uma noite».
Só.
POESIA REALISTA
É esta a rua
O rio da vida
A vida tua
Quem por demasiado
tempo se entregou
ao exercício
de escrever
como quem morre
e quer viver
saberá um dia
se foi de verdade
amado?
Não é a escrita
essa rede realista
que agarra a vida
nas malhas de fogo
ou no trânsito do cianeto?
Quem escreve saberá
que escrevendo prolonga
o dia acabado
em mais uma noite
longa como
corpo esgotado?
António Carlos Cortez
A vida tua
Quem por demasiado
tempo se entregou
ao exercício
de escrever
como quem morre
e quer viver
saberá um dia
se foi de verdade
amado?
Não é a escrita
essa rede realista
que agarra a vida
nas malhas de fogo
ou no trânsito do cianeto?
Quem escreve saberá
que escrevendo prolonga
o dia acabado
em mais uma noite
longa como
corpo esgotado?
António Carlos Cortez
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