Frank
Escusavas de ter morrido quando eu ainda estava a meio do livro.
Não só as memórias de um professor, também as do escritor, receitas – com quanto sofrimento se cozinha um texto. Quantas madrugadas acordadas de palavras a gritar por serem escritas, todas as dúvidas do mundo, quanta gente, quantas vidas se misturam no papel.
Os teus alunos teacher man, os pais, as famílias cansadas de passados apertados de fome, a exigirem um futuro de comida certa para os filhos, sem desvios, longe das artes, coisa de gente com problemas, é doida escreve poemas, o meu filho, não, ele não vai andar pelo pão que o diabo amassou.
Because I can’t help it, a tua resposta à pergunta, porque escreve?
Os estudantes das tuas turmas “ difíceis” bebem-te as palavras, quando abordas a questão da maldição do que é escrever, a abençoada maldição, que não te larga, com a qual mal estás, e sem a qual pior ficas. Escolhes escrever e vais ser levado para câmaras de horrores: o mundo que lá está e que te arranha, a lucidez do espectáculo do quotidiano, que transportas para a escrita e te impede “de alguma vez te aborreceres num Sábado à noite”.
You are your material. Nothing human is alien to you. Dreaming, wishing, planning: it’s all writing, but the difference between you and the man on the street is that you are looking at it, friends, getting it set in your head, realizing the significance of the insignificant, getting it on paper. You might be in the throes of love or grief but you are ruthless in observation. You are your material. You are writers and one thing is certain: no matter what happens on Saturday night, you’ll never be bored again. Never. Nothing human is alien to you. (* pg 246). Lindo, não é?
N’As Cinzas de Ângela fizeste-nos chorar, nós que amamos a Irlanda e os Irlandeses, os leprechauns e as fadas, onde andavam elas nesse tempo, onde estava deus, quando bebias leite com sangue, quando recolhias pelas ruas geladas as cinzas que os outros deixavam cair?
E agora em Teacher Man, que vai sair traduzido em português por estes dias, falas do mundo inteiro, alunos à procura de um cartão de identidade, filhos de deserdados, emigrantes de todo o lado, como aqui, como o 11ºF.
Nós também nos divertíamos oh, se nos divertíamos!
Amin Mohamed Jinai! Gritava a professora e a turma rompia numa enorme gargalhada, pela entoação, pelo teatro e por te lembrares do nome completo. Manel Caxias, o livro que tinha pertencido ao tio, diga lá o que acha o seu tio, Manel? Outra gargalhada colectiva, eles sabiam que tu sabias .
I was already dreaming of a school where teachers were guides and mentors, not taskmakers. (* pg 24).
Estou a ouvi-los como se estivessem aqui,” Nããão setora, lá está a professora a exagerar…”
Momentos de tensão, com o Ivoniky a medir forças com a autoridade, ele, o presidente da associação de estudantes, e a rirmo-nos quando adivinhava a reacção da professora – aí vem, aí vem! E reprimias a tempo algum comentário mais ácido, que eles aguentavam , na maior, porque nos conhecíamos. Ivoniky, São -Tomense e Shaka Zulu da droga. Melissa, frágil, doente e pequenina Timorense, sempre junto da gorda despachada Soraia. Mr.Casaco, que ficou sem pai a meio do ano, e a mãe desamparada , e nós a vermos aquilo, uma pessoa por um filho faz tudo, aguenta reuniões de turma com setores, pró filho passar, pra ficar bem visto, mesmo com o coração a sangrar. Andreia, a negra enorme que me ofereceu pancada no 10º ano, acabámos amigas. A Vaz, com uma mãe em Londres, sempre patrocinada por uns namoraditos que a faziam chorar e a Maria, um pequeno problema, que lhe dava direito a psicólogo e a não fazer nenhum. Bárbara, “não fiz o trabalho, stora, tive de ir visitar o meu primo à prisão”. Carla Min, desculpas para tudo, atrasos, dores de barriga, desatenção, mas lá no bairro empenhada no serviço social, distribuía e tratava das roupas para os mais pobres que ela. E as outras duas mestiças, Cabo Verde, a Dulce e a Telma, uma linda e outra nem por isso, sempre cheias de toilettes e muito limpas, iam crescendo e nós facilmente ligávamos as más disposições a pílulas do dia seguinte, namoros acabados, olhos inchados naquela pronúncia crioula. A Katherine da Venezuela que acompanhava a Fabiana, de estudos redobrados na hora dos testes, que, ao fim e ao cabo, em terra de cegos quem tem um olho é rei.
Como tu, também nós fomos profs constrangidos, disfarçámos em visitas de estudo, tal pais envergonhados que não tivessem sabido dar educação aos filhos… também a nós se nos apertou o coração, que ainda caem do comboio, toda a gente a olhar e eles a fazer show, a abrir e a fechar portas, aterrorizados, acabou, não contem mais comigo pra estas fitas.
Mas o que trabalhavam quando o tema era a vida deles, culturas, famílias, repressão, liberdade! I wanted to be the Great Liberating Teacher...to breath the air of freedom (*pg 120), trabalhos de projecto à medida de cada um, power points, de Malcom X aos pastéis de Belém da Soraia, e tu pensavas, meu deus isto não tem qualidade nenhuma, e o Amin a fazer copy paste do Gandhi, com fotos do Taj Mahal.
Passou por ser também isto a leitura do romance Teacher Man – uma catarse recordatória.
A porra é ele ter morrido … pode ser que afinal vozes de burro cheguem ao céu.
*Frank McCourt, Teacher Man, ed. Harper Perennial, 2006
Graças a deus, ou a tudo o que quer que seja que é mais sagrado, por eu ter uma mãe assim. Dizem que escolhemos os pais que vamos ter, antes de nascermos. Acredito. Não podia ter escolhido de outra forma.
ResponderEliminarSó tu para me comoveres, nesta tediosa manhã, com as frases cruzadas e empolgadas de memórias recentes, escritas (e muito bem) ao ritmo do pensamento, e misturadas com um tributo que nos deixa com vontade de ir conhecer esse tal Teacher Man.
Ainda bem que esta manhã pus as minhas lentes de ler.
bem vinda à blogosfera! Li um artigo sobre este senhor, sobre a sua forma de ensinar contando histórias e estou morta para ler o livro (não sei se já foi publicado em português...) Bjos
ResponderEliminarLido isto, fico com a sensação de que ando, há décadas, a escrever a mesma notícia a uma coluna:factual, precisa,dobrada nos cantos, asseada.Desde a presunçosa página "Initio" dos anos 60, em termos literários, passei da escrita para a leitura. E, ao contrário do Frank,nâo tenho um canhenho rascunhado com as minhas noites americanas. Só memórias e as máos vazias... Gostei de te ler nesta boa prosa, tantos anos depois! Obrigado pela estimulante lembrança!
ResponderEliminarAinda não li, mas já imprimi para ler melhor, à noitinha.Sem planificações, fichas, critérios, PCTs, projectos... Sem o stress do relógio e a corrida para os pavilhões. Com o saco, a mala e O portátil às costas...
ResponderEliminarMas já sei que vou gostar e que vou esperar ansiosamente pela tradução.
Beijinhos.