janeiro 06, 2016

a censura matava a alma


Dê ao Diário apenas o que puder. O resto, dê-o a seus pais. – Contudo este desejo nunca foi cumprido, e ele era bem capaz de o saber quando se decidiu por aquela frase. Aos pais dá-se o que se pode; aos outros, a nós próprios, damos muito mais.
 Passei a confiar naquele livrinho fechado à chave como num ouvinte que tudo entendia. Até percebia as razões que me tinham levado de casa a pessoa que tanta falta me fazia, talvez a de quem mais necessitasse naquela idade – o que me tinha trazido o primeiro livro e os primeiros poemas franceses.
Nesta altura já eu tinha doze anos, já se percebia que não eram os desenhos, com aquela parafernália de pincéis, aguadas, instrumentos metálicos e tintas da china, nem as natações em madrugadas de frio que me iam satisfazer no futuro.

 Na edição inaugural (1968) o meu nome tinha surgido em letras grandes, numa proporção que envergonharia qualquer uma, quanto mais a mim – juro que não sei por que razão, eram vários os colaboradores- mas teriam gostado do meu poema? – Ao mar, hoje e sempre a minha obsessão, o meu consolo. Neste a censura não tocou.
 A minha mãe mantinha arquivos de  tudo – e sim, aqui encontrei numa pasta os restos de páginas- poucas, de O Jornal. Aliás, meias páginas, que para viajar não se podia carregar inutilidades. 

Há dias em que acredito em indícios de  mundos mágicos – nestes últimos tempos o que me acordava todas as manhãs era um verso muito antigo- que eu sabia que era meu, do tempo em que até as páginas de jovens aspirantes a literaturas eram escrutinadas por agentes a quem davam ordem para «matar não, só uns abanõezitos».

 Infelizmente, parágrafos deslocados, palavras apagadas,foram métodos utilizados pela censura, como aliás Rui Knopfli refere no texto que já aqui publiquei. Ao reler essas curtas crónicas, certos versos, percebo que não conviriam a muita gente. Já quase tinha esquecido, ter encontrado o mundo tão pessimista, aos dezassete.
 Não perdoei nunca o  poema truncado – magoada, silenciosa, o título andou escondido em escuridões do cérebro.
 Muitas madrugadas acordei de pesadelos de palavras proibidas – por ser negro, fome, chora. Só ontem acabei por descobrir outra palavra , uma das que tinha sido suprimida.
 O colonialismo português gostava muito dos seus negros,  não era racista, não, dizia-se – o que  não era  admissível é que eles pudessem deixar de ser pobres. O facto de terem eliminado a palavra estuda, é que me fez perceber que no-mundo-lá-fora as regras eram outras – a verdade era proibida, até porque tu me avisaste, pai – Se fosse a si nunca mais  lá publicava nada.

Antes que seja tarde, que a fortuna volte atrás, aqui fica um poema ingénuo da tal rapariguinha de quem o meu pai muito gostava.

A ti adolescente
Não chores
nem o vazio da tua alma
nem o que vai pelo mundo.
Não chores.
Procura na tristeza uma alegria
e vê na solidão- tanta beleza.
Não olhes o menino-fome
não vejas a mulher perdida
não penses naquele que não entra
porque é negro
nem no outro que não estuda
por ser pobre
e não perguntes
qual será menos feliz
- se aquele que não lê
por ser ceguinho
ou o outro 
a quem ninguém ensinou.
E quando vires morrer de frio
uma andorinha
ou quando olhares a borboleta 
de asas partidas
 num estertor 
de angústia 
não chores e nem perguntes porquê
.............................................
é o Mundo que vai a passar. 

Freud explica mas Marx não lhe fica atrás.

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