novembro 14, 2014

a memória, uma coisa estranha

O Artista, Zita


Não sei se lhe hei-de chamar saudade, ou nostalgia. 

Quando vou ao Bairro Alto faço sempre os possíveis por passar pelo velho edifício do Conservatório. Uma noite destas sentei-me numa esplanada ali no canto, uma que não existia quando lá andávamos. O que se mantém é a tasca onde íamos beber amêndoa amarga no intervalo da manhã. Numa rua mais abaixo, paralela à Rua Do Alecrim, por volta do meio-dia já o carvão ardia dentro do bidon gigante onde se grelhava peixe. Almoçávamos em convívio com a classe operária (um fetiche da época) em mesas de madeira, sentados em bancos de correr de pinho tosco acabadinho de sair da árvore – muito ao jeito das novas modernidades de palettes de madeira crua, mas não creio que as de antanho fossem tão frágeis quanto as de hoje. Antanho, puxa vida! Que palavra mais antiga para dar relevância à antiguidade da prosa, ou da prosadora, isto é que é estilo. 


Pois não sei se é saudade ou nostalgia, olho sempre a fachada e as janelas da aula de dança que davam para a Rua dos Caetanos. Dali acenava todas as manhãs para alguém que entrava àquela hora na redacção do Diário Popular. O professor atrasava-se- a arrumar o carro- frequentemente fazia eu a proeza de chegar ainda mais tarde que ele – da Avenida do Aeroporto até ali, subindo a pé ou à boleia do elevador da Glória, a tempo de comprar uma maçã no mercado  e mordiscá-la pelo caminho. Não, não sei se é saudade ou nostalgia, mas lá que é qualquer coisa doce, é. O Carlos Trincheiras não me podia dar boas notas, à atrasada, de pernas bamboleantes de noites mal- ou -bem- dormidas. Eu estudava teatro, nunca seria bailarina.

Uma manhã aparece lá um grupo destes, dos que desenhavam corpos e posturas. Para mim era igual ao litro, fiz o que tinha para fazer. No fim da aula o sketcher vem oferecer-me o meu “retrato”- só podia ser eu, pois ele captou precisamente a postura mais identificativa de mim- além do corpo magro, de pé, num passo ou num passeio, lá estava a minha mão a apoiar o queixo, moi-même. Agradeci, claro, mas não como devia, por narcisismo ou pudor. Se fosse hoje dir-lhe-ia que sim, que ele tinha desenhado precisamente o que me distinguia dos outros, uma danseuse pensativa. Les danseuses, como na Bélgica… A memória, a memória… o Carlos Trincheiras, se bem me lembro, era em alemão que nos indicava as posturas e os passos.  Alguém se lembra?


Guardei o esboço, talvez um dia o encontre nos caixotes da memória; mas ao olhar os sketches de Zita  era inevitável a associação. Será isso que distingue o desenho de um artista de outro qualquer? O poder de arranhar a memória, a dele próprio e a dos outros?


Se um dia eu morrer de repente, como toda a gente, porque é sempre de repente, não tenham pena, que, como Pablo Neruda, confesso que vivi.

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