O Artista, Zita |
Não sei se lhe hei-de chamar
saudade, ou nostalgia.
Quando vou ao Bairro Alto faço
sempre os possíveis por passar pelo velho edifício do Conservatório. Uma noite
destas sentei-me numa esplanada ali no canto, uma que não existia quando lá
andávamos. O que se mantém é a tasca onde íamos beber amêndoa amarga no
intervalo da manhã. Numa rua mais abaixo, paralela à Rua Do Alecrim, por volta
do meio-dia já o carvão ardia dentro do bidon gigante onde se grelhava peixe. Almoçávamos
em convívio com a classe operária (um fetiche
da época) em mesas de madeira, sentados em bancos de correr de pinho tosco acabadinho
de sair da árvore – muito ao jeito das novas modernidades de palettes de madeira crua, mas não creio
que as de antanho fossem tão frágeis quanto as de hoje. Antanho, puxa vida! Que palavra mais antiga para dar relevância à
antiguidade da prosa, ou da prosadora, isto é que é estilo.
Pois não sei se é saudade ou nostalgia,
olho sempre a fachada e as janelas da aula de dança que davam para a Rua dos
Caetanos. Dali acenava todas as manhãs para alguém que entrava àquela hora na redacção do Diário Popular. O professor atrasava-se- a arrumar o
carro- frequentemente fazia eu a proeza de chegar ainda mais tarde que ele – da
Avenida do Aeroporto até ali, subindo a pé ou à boleia do elevador da Glória, a
tempo de comprar uma maçã no mercado e mordiscá-la pelo caminho. Não, não sei se
é saudade ou nostalgia, mas lá que é qualquer coisa doce, é. O Carlos
Trincheiras não me podia dar boas notas, à atrasada, de pernas bamboleantes de
noites mal- ou -bem- dormidas. Eu estudava teatro, nunca seria bailarina.
Uma manhã aparece lá um grupo
destes, dos que desenhavam corpos e posturas. Para mim era igual ao litro, fiz
o que tinha para fazer. No fim da aula o sketcher
vem oferecer-me o meu “retrato”- só podia ser eu, pois ele captou precisamente a
postura mais identificativa de mim- além do corpo magro, de pé, num passo ou
num passeio, lá estava a minha mão a apoiar o queixo, moi-même. Agradeci, claro, mas não como devia, por narcisismo ou
pudor. Se fosse hoje dir-lhe-ia que sim, que ele tinha desenhado precisamente o
que me distinguia dos outros, uma danseuse
pensativa. Les danseuses, como na
Bélgica… A memória, a memória… o Carlos Trincheiras, se bem me lembro, era em
alemão que nos indicava as posturas e os passos. Alguém se lembra?
Guardei o esboço, talvez um dia
o encontre nos caixotes da memória; mas ao olhar os sketches de Zita era inevitável a associação. Será isso que
distingue o desenho de um artista de outro qualquer? O poder de arranhar a
memória, a dele próprio e a dos outros?
Se um dia eu morrer de repente,
como toda a gente, porque é sempre de repente, não tenham pena, que, como Pablo
Neruda, confesso que vivi.
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