junho 08, 2013

dá-me lume, jorge palma



  história de uma cantiga

Nem precisa de fechar os olhos para acreditar que é para ela, só para ela que as palavras são inventadas e a música imaginada. Um corpo árvore esticado até ao céu dança «o pa- raí- so- no teu olhar».
 Augusta despe a blusa e suspende o gesto no top de alcinhas a condizer com a saia tipo rapariga campestre, reminiscência de qualquer western barato ou do tempo das raparigas em flor, make love not war. Numa verónica quase perfeita, deixa cair a seus pés a saia de seda florida.
 No espelho uma personagem de Almodóvar, nádegas redondas, coxas volumosas, os seios menos rijos, a linha da cintura ainda considerada interessante, a curva da barriga   o tempo das matronas, para trás as twiggies

Os pés descalços na alcatifa áspera. O deleite da dança. A voz rouca do cantor romântico, «dá-me lume, dá-me lume», levanta-lhe todos os pelos dos braços e «o paraíso no teu olhar» traz-lhe um arrepio pelo corpo todo.
Memória das cenas em que tinha incendiado e sabia da certeza do paraíso nos olhos dela. Religiosamente guarda cada momento, cada segundo de penumbras, cigarros, algum álcool e aquela música no corpo que nascera com ela. Dar tudo, abrir-se numa oração, para a música e o sentir.
 Pega na lista telefónica e procura p,p,p,p, não, é melhor tentar a Net, Palma ponto pt, nada. Zero a tecnologias. Sete e meia da noite, toma um banho de espuma, hidromassagem 30 minutos, sumo de laranja em roupão, um queijo fresco, lavar os dentes, um vestido justo e decotado. Não. Acaba por sair de calças compridas pretas, boca-de-sino, de seda pesada balançante a acariciar as pernas no andar. Blusa igual à das bailarinas, decote em bico, bem apertada  com uns atilhos. As sandálias de salto alto pretas, de verniz e pedrinhas de vidro entre os dedos, a bolsinha a tiracolo. Écharpe esvoaçante, o roxo sempre combinara com os seus olhos. Já na escada, volta atrás, um cálice de whisky. São 8 e 45, ainda é cedo; pela noite de Lisboa, sente-se brilhante e livre. Deixa o carro no Cais-do-Sodré e sobe até ao Bairro Alto. Como antigamente. É bom caminhar sozinha, com esta leveza dentro dela, nem idade, nem barriguinha, tudo empacotado naquela roupa que lhe fica a matar. Num convencimento instantâneo avança para a passadeira, aperta violentamente os lábios a reavivar o brilho escuro do baton. Sobe a rua do Alecrim como quem tem tudo combinado. Passa pela Brasileira, uma bica e um cigarro. P de Palma.pt. A Brasileira imunda. Mete-se num teatro para fazer horas, o João Lourenço de cabelos brancos. O tema da peça: pessoas, a paisagem mais aliciante do universo, ainda bem, pusera-lhe mais alma.Paragem na rua da Misericórdia, ainda durava, a leitaria, um whisky solo – Almodóvar, amante de mulheres, também o Palma.
A noite nem quente nem fria – morna por dentro, Augusta continua a subir para lá de S. Roque. Entra no João Sebastião Bar com o seu passo inseguro por entre as mesas de névoas viciadas de tabacos.  Mesmo ao fundo, lá está  ele, na mais inacessível. Que bom ser escuro, pensa, mas quando ela lhe pede, dá-me lume, ele viu mesmo o paraíso no seu olhar.



nota: Este recado, guardado na gaveta há mais de dez anos, aqui fica. É que ouvi hoje o Jorge Palma confessar a António Macedo,na Antena 1que  estimava o afecto do público, como no caso   daquele   senhor  que se aproximou dele e muito sério, lhe disse, obrigado . E acabei por decidir que há coisas que não vale a pena adiar. Obrigada, Jorge Palma.





Sem comentários:

Enviar um comentário