A
poesia é como o amor, não se discute?
Põe-se
o leitor para aqui a conjecturar, a tentar descobrir porque escreve o poeta
assim e não assado. Pela dor é que vamos,
pensa, e procura na estante qualquer coisa que sustente esta sua certeza, de
ser pela dor que se poetiza. Cá está, por alguma razão Paul Eluard deve ter
chamado a este livro Capitale de la douleur. É isso, a poesia
é o lugar aonde se sofre e aonde ninguém nos diz, não chore, vá lá, não chore,
seja uma mulherzinha, seja homem.
O
poema será também o lugar onde nos encontramos, nós, e os poetas uns com os
outros. E se esse lugar for um eléctrico, que até se pode chamar desejo ou nem por isso, daqueles amarelos da nossa Lisboa? E se num poema do quotidiano, enfim, desses quotidianos que albergam uma patente
insatisfação do eu (… na humilhante morte
de quem era alto eterno e dominante…) se unissem Ruy Belo, José Gomes
Ferreira e Alexandre O’ Neill?
Poderia
a dor ser mais banal, menos cruel?
o poeta
num eléctrico
De súbito ao cair de mais um ano
sou por instantes sinto-me ao cair da tarde
do sol que antes brilhante é luz lustrosa
e pegajosa agora à superfície da calçada
na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante
sou ao cair da tarde de um ano que cai
eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado
um colectivo passageiro num eléctrico
mas só supostamente anónimo ou popular ou colectivo
pois posso dar-me ao luxo de evocar um livro lido há muito
num destes animais metálicos já hoje arcaicos deslocados
e amanhã vivos apenas nesse livro do zé gomes que os evoca
e eu me posso dar ao luxo de evocar após haver falado
nessa farmácia onde comprei há pouco o anti-asmático
do cão asmático das praias que primeiro ouvi tossir
num verso de o’neill e só depois num mês de maio em espinho
ao imprimir na areia graves passos de poeta nupcial
sinto-me alguém de súbito ao pagar o meu bilhete
bilhete de quem volta e de quem vive do trabalho
mas que pode exibir o seu sapato alto à moda
e alinhar uns versos no papel da embalagem do remédio
E eu que distraído e que perdido e que privado já
de mais alguma face da embalagem do remédio onde escrevia
eu que já não sabia como pôr ponto final
em toda esta conversa mais do que fiada
dizer ao ver que continuo alheio lírico e sentado
oiço a voz grossa e neutra do sisudo guarda-freio
que chegámos ao fim da viagem para ele
e fim deste poema para mim
sou por instantes sinto-me ao cair da tarde
do sol que antes brilhante é luz lustrosa
e pegajosa agora à superfície da calçada
na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante
sou ao cair da tarde de um ano que cai
eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado
um colectivo passageiro num eléctrico
mas só supostamente anónimo ou popular ou colectivo
pois posso dar-me ao luxo de evocar um livro lido há muito
num destes animais metálicos já hoje arcaicos deslocados
e amanhã vivos apenas nesse livro do zé gomes que os evoca
e eu me posso dar ao luxo de evocar após haver falado
nessa farmácia onde comprei há pouco o anti-asmático
do cão asmático das praias que primeiro ouvi tossir
num verso de o’neill e só depois num mês de maio em espinho
ao imprimir na areia graves passos de poeta nupcial
sinto-me alguém de súbito ao pagar o meu bilhete
bilhete de quem volta e de quem vive do trabalho
mas que pode exibir o seu sapato alto à moda
e alinhar uns versos no papel da embalagem do remédio
E eu que distraído e que perdido e que privado já
de mais alguma face da embalagem do remédio onde escrevia
eu que já não sabia como pôr ponto final
em toda esta conversa mais do que fiada
dizer ao ver que continuo alheio lírico e sentado
oiço a voz grossa e neutra do sisudo guarda-freio
que chegámos ao fim da viagem para ele
e fim deste poema para mim
Ruy Belo, Obra Poética, ed. Presença
Ouro sobre azul (azul, sim ) seria embarcarmos todos no mesmo eléctrico, ainda que para curta viagem,
calçada da Glória acima, e encarnarmos a mulher de carne azul; ou alguém quer fazer de cão asmático?
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