setembro 16, 2010

Ciganitas




Era no tempo da liberdade. O mundo um grande quintal. Um monte de terra junto ao muro do fim do mundo. E no fim do mundo viviam umas criaturas da nossa idade, cujas cabeças desgrenhadas emitiam gargalhadas roucas, que despudoradamente andavam aos saltos do lado de lá.

Era um sítio mais de sons que de imagens donde evoluía um refrão ritmado , grito de guerra contra as cabeças desgrenhadas - " ci-ga-ni-ta- à- tó-tó-ci-ga-ni-tá-tó--tó- dá-me -um - bo-ca-dinho- de- pão- de-ló!" E aprendemos a repetir: Ciganitátótó-dámumbcadinhodepãodeló! Uma espécie de hino para irritar alguém.Sabíamo-lo bem, oh se sabíamos! E como saltavam os nossos corações dentro do peito, na expectativa do susto desejado : que voltassem a espreitar, que reagissem á nossa infantil provocação as criaturas com poderes para fazer aparecer bonecas desaparecidas, a quem ficaria para sempre associada a palavra quebranto, a palavra feitiço .

O mundo mudou, estava sempre a mudar. Puseram-nos numa escola longe dos bandos pelos pinhais e das fábricas de rebuçados a cheirar a açúcar queimado de muitas cores.
Uma escola da câmara que funcionava num antigo palácio de grandes portões de ferro e de pátios de gigantescas palmeiras.

Havia meninos que não tinham sapatos. Havia sobretudo uma, muito esguia,muito mais alta do que nós, que quase sempre apanhava reguadas por causa dos erros nos ditados.Lembro-me dela no exame da 4ª classe, no estrado junto ao quadro , alta e magra e sem saber o que dizer quando lhe perguntaram o que iria fazer no ano seguinte. E à questão de uma das examinadoras,- Mas queres passar, não queres?- demora a responder. Apoiando -se ora num pé ora no outro , repuxa o cabelo crespo a esconder a cara. Um soluço, um murmúrio - Não , não quero deixar a minha professora.

Excusado será dizer que foi acompanhada pela comoção de todos os adultos presentes. Houve lencinhos tirados das carteiras , leques desesperadamente abanados e até quem saísse da sala para beber água.

Nós, os colegas, não entendemos completamente. Então ela era a que levava mais e estava com pena de se ir embora?

Não sei se os senhores de Bruxelas ainda estão a decidir o que hão-de pensar sobre este assunto, nem sei se alguma vez saberemos o que pensam ou o que são autorizados a pensar.De ciganos sei muito pouco,vejo alguns aqui pelo Alentejo e as crianças parecem como todas as crianças, perguntam olá estás boa? E não se surpreendem se lhes fazemos uma festa na cabeça.

Conheci saltimbancos que sempre imaginei ciganos e actores-saltimbancos que ainda bem que existiram. De tanto andar de um lado para o outro, de casa em casa, de terra em terra quase podia reinvidicar-me de nomadismo. Não será uma coisa necessáriamente má, nem forçosamente boa.

A única certeza que tenho é que não é pela ignorância que vamos a algum lugar. Se aprofundássemos um pouco o nosso conhecimento sobre nós próprios,entenderíamos melhor o outro? E se nos aproximássemos um pouco perderíamos o medo?

Quem me dera ter saltado o muro,ter chegado à fala com os meus amigos do lado de lá. Quem sabe o que aconteceria? Algo mágico?

2 comentários:

  1. Agora a sério!
    Partilho inteiramente do principio de que cada um deve ser considerado individualmente e não como elemento étnico.A antropologia e a etnografia lá se encarregarão disso,no universo da divulgação do conhecimento,entenda-se!Tudo o resto é racismo,segregação e,muitas vezes já o foi/é,a servir as limpezas étnicas,numa palavra, o extermínio assassino!
    Mas a memória dos povos é curta,e quantas vezes a HISTÓRIA É LETRA MORTA!Se assim não fosse, ninguém com um apelido daqueles,num país chamado França,agiria como se viu.ÉTNICA E GLOBALMENTE falando,UMA IMORALIDADE,ainda que as irregularidades devam ser reguladas!
    Finalmente e por causa dos muros de todas as VIDAS,é preciso ver-se que todos eles têm dois lados...pode-se saltar de ambos!

    SALTA POCINHAS

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  2. a França anda maluca com tanta etnia e não sabe que fazer com a diversidade, arranjar bodes expiatórios foi a solução mais fácil.bjo

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