dezembro 02, 2014

Eça de Queiroz , A Catástrofe. A História não se repete?



 «Mas de que vale agora pensar no que se poderia ter feito!...O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.

Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a idéia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade…Estávamos caquécticos! O Governo, a Constituição, a própria Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O país esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!...Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus! Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo  toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe caia feita das secretarias, como a luz vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E como o governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas quando acorda – é como nós acordámos – com uma sentinela estrangeira à porta do Arsenal! Ah! Se nós tivéssemos sabido!

Mas sabemos agora! Esta cidade, hoje, parece outra. Já não é aquela multidão abatida e fúnebre apinhada no Rossio, nas vésperas de catástrofe. Hoje vê-se nas atitudes, nos modos, uma decisão. Cada olhar brilha de um fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-se como se verdadeiramente contivessem um coração!(…) As mulheres parecem ter sentido a sua responsabilidade, e são mães, porque têm o dever de preparar cidadãos. (…) Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita em guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro… (…) E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.

Como me lembro! Íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna, e entre duas fumaças, dizer indolentemente:
 – Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...»
In, A Catástrofe e Outros Contos, Eça de Queiroz

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