julho 08, 2014

Foucault, Xerazade e António Carlos Cortez

 

« Históricamente, foi  um gesto carregado de riscos, velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente a transgressão, restaurando o risco de uma escrita à qual, no entanto , fossem garantidos os direitos de propriedade. A partir daí ( finais do sec. 18 inícios de 19), explica  Michel Foucault,« a possibilidade de transgressão própria do acto de escrever adquiriu progressivamente a aura de um imperativo típico da literatura.» 

Ainda bem, transgredir é delicioso, mesmo que não levemos atrás de nós o resto da turma. Mas ser imortal é preciso?  Inspiradora, a imagem de  Xerazade,   com a vida presa por um fio.  Para Xerazade contar histórias era não morrer ,«adiar a morte».(pgs 35,36)*.

«A nossa cultura metamorfoseou este tema da narrativa (...) a escrita está agora ligada ao sacrifício da própria vida (...) a obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser assassina do seu autor.» Ou seja, como Foucault já tinha citado,- Beckett- « que importa  quem fala?» (pg 34)*

  Haverá  autores imortais,embora  prefira pensar que se alimentam uns dos outros, desde e para sempre.  Quereria  Xerazade  ser imortal? Talvez apenas viver, que não vive se não imagina, não inventa,não conta as suas histórias . A escrita é estar vivo, como diz António Carlos Cortez , «o rio da vida», quem escreve «como quem morre/ e quer viver» que escrevendo se «prolonga/ o dia acabado/ em mais uma noite».

Só. 

 

POESIA REALISTA

É esta a rua
O rio da vida
A vida tua

Quem por demasiado
tempo se entregou
ao exercício

de escrever
como quem morre
e quer viver

saberá um dia
se foi de verdade
amado?

Não é a escrita
essa rede realista
que agarra a vida

nas malhas de fogo
ou no trânsito do cianeto?
Quem escreve saberá

que escrevendo prolonga
o dia acabado
em mais uma noite

longa como
corpo esgotado?

António Carlos Cortez


Que bom passar férias com a filosofia e os poetas.


 

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