abril 23, 2014

Salgueiro Maia por João de Melo

ABRIL, VINTE E CINCO: -Juro pela minha honra. E por ela me declaro pronto, consciente da gravidade e do sonho que em parte se combinam para serem também a grandeza e o risco da minha missão. Mas preciso de o repetir baixinho, de lentamente o repetir dentro de mim, baixinho e em presença dos meus sentidos, a fim de que tudo deixe de ser apenas um sonho e se transforme pouco a pouco em realidade. Sei que devo entrar de madrugada na cidade adormecida, contornar suas rotundas desertas, passar além dos cruzamentos que me levam para o centro e pensar sempre que nada disto que está a acontecer-me faz ainda parte de mim; vai apenas a caminho da verdade, entre o imperativo e o sonho de quem ordena e exige que chegou a honra de o tempo e o sonho serem exactamente isso, o tempo e o sonho de um país que se perdeu de si  e de quem acreditou nas luas e nos cravos rubros e derradeiros deste século XX. Os homens sob o meu comando não são mais do que sombras de si mesmos; a arma que eles empunham, um engenho fora de combate; os carros passam por ser inventos nossos, brinquedos exagerados e desmedidos com que todos nós um dia sonhámos – memórias daquela guerra onde em tempos também eu fui um homem anterior e em tudo diferente de mim. O que eu sou agora é um exercício, uma parte experiente, um resumo de tudo aquilo que outrora fui: apenas um guerreiro tímido e assustado que no corpo esconde o medo-sonho da missão nocturna que os queridos companheiros me confiaram e que eles com todo o secreto e devido pormenor comigo discutiram e planearam.
Tendo-me perguntado se queria livremente embarcar na noite temerária do golpe militar, eu de pronto lhes disse que sim, contassem comigo e me dessem trabalhos, perigos e segredos tais que nem eu mesmo neles pudesse acreditar ou deles quisesse um dia ter memória.
Vim pois à cidade para tomar a cidade. Visito as ruas e as casas para vigiar o sonho e o silêncio e a tranquilidade das ruas e das casas. Ocuparei posições nos bairros antigos de Lisboa, cercando as ruas baixas que vão desde o Rossio até ao movimento secreto dos barcos no rio; pelos vultos das sentinelas e pelos passos dos agentes duplos irei até ao fundo da grande noite portuguesa, uma noite que dura, segundo me disseram os mais velhos, há 48 anos soturnos e inamovíveis e ao longo da qual todos fomos sendo postos de parte, fora da vontade, da raiz, da moral e da história.
E mais me disseram os queridos companheiros que devia por ali dispersar os homens certos e os comandos por mim escolhidos, a cortar o trânsito das ruas e a vigiar os barcos suspeitos que na altura vogassem no rio – com o que logo se poria a cidade suspensa, enchendo-se ela lentamente de boatos, de vozes dos seus próprios remorsos, a um tempo tranquila e em estado de angústia. Mandarei apontar ao rio dois dos formidáveis canhões da minha guarnição e tomarem as esquinas os soldados mais afoitos e experientes e emboscarem-se com a sombra dos muros os rostos mais lívidos e também mais determinados. Os demais, por mim chamados e escolhidos, subirão gradualmente comigo às zonas de perigo, onde afinal se cumprirá uma única de todas as vontades em confronto.
É muito simples a minha ideia: cercar o quartel da guarda nacional, dar-lhe um ultimato para que se renda e me entregue as suas armas e depois ficar ali a encher-me de paciência, fome e desconforto, sono e frio mas sempre atento ao que der e vier. Quando me meti nos trabalhos desta missão, jurei por minha honra que nela iria até ao fim. Empenhei nisso a palavra e a vida. Sabia-me a mim próprio sujeito e tanto a perder-me como a salvar-me nela, sendo-me, aliás, claramente dito que até podia tratar-se de uma viagem longa, louca e sem regresso, feita daquele alvoroço que antecede o definitivo e fatal esquecimento, o qual também dá passagem para onde a morte é escura e irreversível. Por isso me despedi da mulher e das filhas. Disposto a morrer por elas, eis-me contra isto, para melhor ser por isto como um dia dirá o escritor Miguel Torga. Só faz sentido a gente morrer por aquilo que ama e eu fui desde sempre do primeiro dia da minha infância até esta madrugada de vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, preparado para o amor e para a morte.
Se preciso for – sublinharam os queridos companheiros –alinhas os carros de combate no Largo do Carmo, apontas os canhões aos portados e aos torreões da fortificação, ordenas fogo aos teus e que haja choro e ranger de dentes – e gritos e braços erguidos nos primeiros vivas à liberdade e vozes saídas da clandestinidade para berrarem bem alto que “o povo unido jamais será vencido”.
Pode ser que eu morra varrido pela bala do atirador solitário que fica quase sempre para contar a história. Ainda assim morrerei a meio do maior de todos os gestos da minha vida. Mas pode também acontecer o contrário de tudo isto: vir um mar de povo, erguerem-se as vozes, encherem-se de flores os canos das espingardas e não ser preciso matar nem morrer, nem tomar de assalto a corte, nem dar voz de prisão ao rei e aos seus vassalos.  Dizem que em missões como esta vem sempre alguém dizer que afinal o rei vai nu e que o reino velho, se lhe dá o vento da agonia e do estremecimento, logo de seus fios e cerzidos se desprende…
Preveniram-me os queridos e honestos companheiros contra a loucura e desespero da polícia política, os sangrentos cães beligerantes do ditador. Eu sei que, para eles, defender o reino não é apenas uma questão de honra, mas mais ainda uma ideia de grandeza proporcional à crueldade e estupidez do todo poderoso. Ora eu vim, na condição de oficial e cavaleiro que sou, entrarei firme nos largos portões do Carmo e a ninguém saudarei pelo caminho até estar certo de o fazer com a honra que passa dos vencedores aos vencidos; quando chegar à presença do todo-poderoso, acederei a fazer-lhe uma pequena mesura, uma apenas discreta vénia de cabeça, como se ainda pudesse confortá-lo com olhar, antes de exigir-lhe que se renda e se confie aos meus cuidados. Não que eu goste dele ou tenha pena da sua velhice ou me mova qualquer piedade sobre as injustiças e os danos que ele ao povo causou – mas tratá-lo-ei sempre por vossa majestade ou por vossa excelência. Se me perguntar de onde venho e a quem jurei obediência, qual a minha condição e como me chamo, responderei que venho de Santarém, às ordens do Movimento das Forças Armadas, tenho o posto de Capitão e o meu nome é SALGUEIRO MAIA!   Lisboa, 10.2.1994   

1 comentário:

  1. Obrigada, Aniper, por teres escolhido este texto. Obrigada João de Melo , por teres posto a tua arte ao serviço dos valores maiores.

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